DW Brasil – Na sexta-feira passada (22/02), dia em que a oposição na Venezuela retomou com força sua tentativa de colocar o governo de Nicolás Maduro contra a parede, a principal aparição do autoproclamado presidente interino venezuelano, Juan Guaidó, ocorreu num palco em Cúcuta, na Colômbia. Na cidade fronteiriça, Guaidó viu um show pró-oposição ao lado dos presidentes do Chile, da Colômbia e do Paraguai. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, compareceu ao evento, mas Jair Bolsonaro não. Foi o sinal mais claro até aqui de que o Brasil trata a crise de um modo diferente de seus vizinhos.
Assim como os presidentes Sebastián Piñera (Chile), Iván Duque (Colômbia) e Mario Abdo Benítez (Paraguai), Bolsonaro é parte da onda direitista que tomou a América do Sul. Durante a campanha, uma de suas principais armas contra os adversários de esquerda em termos de política externa foi a oposição a Maduro. Críticas ao presidente da Venezuela foram corriqueiras em sua campanha, e entre os vários ataques de bolsonaristas feitos ao PT, que governou o Brasil por 13 anos com Lula e Dilma Rousseff, a lembrança da sintonia com o chavismo era frequente.
Para especialistas, Bolsonaro não avança com rapidez contra Maduro pelo fato de haver resistência, dentro do seu governo, ao ímpeto anti-chavista.
“Essa postura mais cautelosa do Brasil tem menos a ver com o presidente e seu círculo ideológico mais próximo e mais a ver com um freio de arrumação que tem como epicentro os militares e provavelmente as alas do Itamaraty mais desgostosas com os rumos do governo Bolsonaro”, afirma Flávio Rocha de Oliveira, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.
Antiglobalismo
O impulso ideológico anti-Maduro da gestão Bolsonaro foi demonstrado menos de um mês após sua posse. Em 23 de janeiro, ao lado dos Estados Unidos e de outros países sul-americanos, o Brasil reconheceu Guaidó como presidente interino da Venezuela.
Aquela decisão representou uma tomada de lado num conflito político regional, posição que contrasta com a da não-intervenção, pedra angular das relações exteriores brasileiras nas últimas décadas. “Em questão de minutos colocou-se em dúvida uma política externa que, seja mais à direita ou mais à esquerda, tem uma linha mestra que vem sendo construída desde o regime militar, mais especificamente do governo [Ernesto] Geisel [1974-1979]”, afirma Oliveira.
O artífice daquelas ações foi o ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro. Ligado ao escritor Olavo de Carvalho, um dos ideólogos do bolsonarismo, Ernesto Araújo é conhecido por um texto publicado em 2017 no qual afirma que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com a ajuda de Deus, seria capaz de “salvar o Ocidente”.
“Araújo foi alguém escolhido para exercer uma função muito específica nesse discurso do antiglobalismo”, afirma Raquel Rocha, doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. “Além disso, na reunião em que reconheceu Guaidó, ele cancelou a cooperação militar entre Brasil e Venezuela sem consulta prévia às Forças Armadas”, lembra.
Após o reconhecimento de Guaidó, militares brasileiros indicaram via imprensa sua insatisfação com Araújo. No início de fevereiro, o jornal Folha de S. Paulo afirmou que a ala militar do governo promoveu uma intervenção no Itamaraty e passou a tutelar o chanceler. Não seriam poucos com essa missão. Bolsonaro tem oito militares em seu gabinete, muitos deles dentro do Palácio do Planalto.
Para Oliveira, da UFABC, uma possível indicação desta tutela ficará visível ao mundo nesta segunda-feira, quando Araújo estará na reunião do Grupo de Lima, em Bogotá, para tratar da Venezuela acompanhado do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, um general e seu superior. “Se o chanceler falar algo no sentido de ampliar a pressão sobre Maduro ou alargar o papel do Brasil e o vice-presidente falar outra coisa ou moderar o tom, é a palavra do vice-presidente que vai valer”, diz.
Rocha, por sua vez, destaca que a atuação dos militares na política externa ocorre também devido à ausência de uma postura mais assertiva por parte de Bolsonaro. “Essa crise tem deixado claro que o próprio Bolsonaro não vai se envolver, que não teremos uma diplomacia presidencial, como foi com o Lula e Fernando Henrique Cardoso”, afirma. “Assim, alguns temas mais delicados e sensíveis abrem lacunas para o corpo militar, que já era robusto, mas está crescendo”, afirma.
A professora de relações internacionais destaca que a importância dada aos militares para a questão da Venezuela se reflete também em declarações feitas por militares cujas atribuições não são relacionadas diretamente à política externa. É o caso do general Augusto Heleno, que está no Gabinete de Segurança Institucional (GSI). “Heleno fez comentários significativos sobre a Venezuela recentemente, mas nunca se viu um chefe do GSI falando publicamente sobre as relações exteriores”, afirma.
Divisões no futuro?
No sábado, o chefe da operação militar em Roraima, na fronteira com a Venezuela, o coronel do Exército José Jacaúna, classificou de “agressão” a ação de militares venezuelanos contra opositores que estavam em Pacaraima, município brasileiro. Houve revide com bombas de gás lacrimogêneo por parte de soldados às pedras jogadas por venezuelanos que estavam do lado brasileiro. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a declaração de Jacaúna causou mal-estar entre os militares do governo e ele foi enquadrado.
Na semana passada, também conforme relato de bastidores da Folha de S. Paulo, a ala militar do governo se dividiu quanto ao envio de ajuda humanitária à população venezuelana durante o fim de semana. Militares do Planalto foram contra a medida, que poderia ser vista como provocação por parte de Maduro, enquanto o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, teria apoiado a iniciativa.
“É preciso dizer que não está claro hoje quais as divisões internas das Forças Armadas ou como elas se refletem dentro do governo”, diz Oliveira. “Diante deste contexto, é preciso perguntar: até que ponto esses ministros militares vão conseguir conter a ala ideológica do governo?”
Rocha concorda. Para ela, enquanto os militares e a ala ideológica estiverem representados no governo, atritos serão comuns na política externa brasileira. “Vai haver uma luta por poder, por influência e para saber quem tem mais proximidade com Bolsonaro”, afirma.