Dearbail Jordan & Simon Jack/ BC News – Às 22h30 de uma noite fria de dezembro de 2019, um ex-todo-poderoso da indústria automobilística global se encontrava dentro de uma caixa a bordo de um avião, esperando para fugir do Japão. “O avião estava programado para decolar às 23h”, lembra o brasileiro Carlos Ghosn. “Os 30 minutos de espera na caixa do avião, aguardando a decolagem, foi provavelmente a espera mais longa que já tive na minha vida.”
Agora, pela primeira vez, o homem que já foi o chefe da Nissan e da Renault compartilhou detalhes de sua fuga ousada. Em uma entrevista exclusiva à BBC, Ghosn conta sobre como se disfarçou para escapar despercebido pelas ruas de Tóquio, por que uma grande caixa de equipamento musical foi escolhida para retirá-lo do Japão e a alegria que sentiu quando finalmente pousou no país onde cresceu, o Líbano.
Ghosn nasceu em Porto Velho, Rondônia, e mudou-se com a família para o Líbano aos seis anos. Ele possui nacionalidades brasileira, libanesa e francesa. “A emoção é que, finalmente, vou ser capaz de contar a história”, diz.
Ghosn foi preso em novembro de 2018 sob alegações da Nissan de que ele havia subestimado seu salário anual e feito mau uso de fundos da empresa, o que ele nega. Na época, Ghosn era o CEO da montadora japonesa. Ele também foi presidente-executivo da Renault (França) e chefe de uma aliança de três montadoras: Renault, Nissan e Mitsubishi.
O corte de custos promovido por ele na Nissan — inicialmente polêmico — acabou sendo visto como algo que salvou a montadora da falência. Por causa disso, ele se tornou uma figura altamente respeitada e reconhecida no setor.
Mas Ghosn alega que justamente por isso se tornou um bode expiatório — em sua visão, tirá-lo de cena seria uma forma de a Nissan lutar contra a crescente influência da Renault, que ainda possui 43% da empresa japonesa.
A série de documentários Storyville detalha sua extraordinária ascensão e queda repentina no episódio ‘Carlos Ghosn: The Last Flight’ (Carlos Ghosn: O último voo, em tradução livre) que será exibido no canal BBC 4, no Reino Unido, nesta quarta-feira (14/7).
‘Choque’
Descrevendo o momento de sua prisão no aeroporto de Tóquio, há três anos, Ghosn disse: “É como se você fosse atropelado por um ônibus ou algo realmente muito traumático tivesse acontecido com você. A única memória que tenho desse momento é o choque, o trauma congelado”, conta.
Ghosn foi levado para o Centro de Detenção de Tóquio, onde recebeu um uniforme de prisão e foi confinado em uma cela.
“De repente, tive que aprender a viver sem relógio, sem computador, sem telefone, sem notícias, sem caneta — nada”, diz.
Por mais de um ano, Ghosn passou longos períodos sob custódia ou foi mantido em prisão domiciliar em Tóquio, após ser libertado sob fiança. Não ficou claro quando um julgamento aconteceria — temia-se que pudesse levar anos — e Ghosn enfrentaria mais 15 anos de prisão se condenado, em um país com uma taxa de condenação de 99,4%.
Foi durante um período de prisão domiciliar, quando Ghosn foi informado de que não poderia ter nenhum contato com sua esposa, Carole, que ele começou a pensar em escapar.
“O plano era que não mostrasse meu rosto, então teria que ficar escondido em algum lugar”, diz.
“E a única maneira de me esconder era dentro de uma caixa ou de uma mala para que ninguém pudesse me ver — ninguém poderia me reconhecer e o plano poderia funcionar.”
Ele conta que a ideia de usar uma caixa grande que normalmente conteria instrumentos musicais “era a mais lógica, principalmente porque nessa época havia muitos shows no Japão”.
Mas como alguém antes tão famoso — e agora infame — no Japão poderia ir de sua casa na capital a um aeroporto e escapar?
O plano era, diz Ghosn, se comportar da forma mais normal possível no dia. “Tinha que ser um dia como outro qualquer. Um dia em que eu fizesse uma caminhada normal com roupas normais, atitude normal e, de repente… tudo muda.”
Ghosn teria que trocar os ternos que usou durante anos como um executivo do alto escalão do setor automotivo global por algo um pouco mais casual, como jeans e tênis.
“Você pode imaginar que tive que ir a lugares onde nunca estive, comprar roupas que nunca comprei”, diz. “Tudo para que fosse bem-sucedido e não chamasse atenção.”
‘A fuga’
De Tóquio, Ghosn viajou de trem-bala para Osaka, onde um jato particular o aguardava no aeroporto local para partir.
Mas, primeiro, precisou se esconder dentro de uma caixa, em um hotel próximo.
“Quando você entra na caixa, não pensa no passado, não pensa no futuro, apenas pensa no presente”, diz.
“Você não tem medo, não esboça nenhuma emoção. Só pensava em ‘esta é sua chance, você não pode perdê-la. Se você perder, você vai pagar com a sua vida, com a vida de um refém no Japão’.”
Ghosn foi transportado do hotel para o aeroporto por dois homens, Michael e Peter Taylor, pai e filho que se passaram por músicos.
Ao todo, Ghosn calcula que ficou na caixa por cerca de uma hora e meia, embora diga que parece ter durado “um ano e meio”.
O jato particular decolou na hora marcada e Ghosn — agora livre de seu confinamento — voou durante a noite, trocou de avião na Turquia antes de pousar em Beirute, na manhã seguinte.
O Líbano não possui tratado de extradição com o Japão, então Ghosn foi autorizado a permanecer no país, do qual tem cidadania.
No entanto, os americanos Michael Taylor e seu filho, Peter, foram entregues pelos Estados Unidos ao Japão e agora enfrentam três anos de prisão pela ajuda à fuga de Ghosn.
Também enfrenta prisão Greg Kelly, ex-colega de Ghosn na Nissan, que continua em prisão domiciliar em Tóquio, acusado de ajudar seu ex-chefe a esconder seus ganhos. Kelly nega as acusações.
O que dizer a quem ficou para trás no Japão?
“Disseram-me que o fim do julgamento (de Greg Kelly) acontecerá no fim deste ano. E então Deus sabe quais serão os resultados deste caso baseado, como eu disse, em mentiras”, disse Ghosn.
“Sinto pena de todas as pessoas que são reféns do sistema de justiça do Japão, todas elas.”
Análise de Simon Jack, editor de negócios da BBC
Pioneiro, visionário, egocêntrico, outsider.
Todos esses adjetivos podem descrever esse cidadão meio libanês, meio brasileiro.
Carlos Ghosn viveu mais como um chefe de Estado do que como um chefe-executivo. Uma festa da empresa no Palácio de Versalhes — coincidentemente , diz ele — em seu 60º aniversário, contou com garçons vestidos em trajes pré-revolucionários.
Como chefe simultâneo da Renault e da Nissan, ele era fonte de inquietação para alguns em ambas as empresas.
Do lado japonês, funcionários da Nissan temiam que Ghosn comandasse um golpe francês nos negócios tradicionais que ele salvou.
E, do lado francês, os da Renault não gostavam de seu perfil anti-establishment e a frequência com que aparecia nas capas de revistas que retratavam a alta sociedade de Paris.
Qualquer executivo-chefe global deve ser sensível às nuances políticas. O fato de Carlos Ghosn, depois de quase 20 anos na Nissan, ter sido totalmente pego de surpresa por sua prisão em Tóquio sugere que ele perdeu o contato com as organizações que estava tentando aproximar.
Sua história tem tudo: arrogância, política corporativa e global e uma escapada digna de um filme de Hollywood. Ele insiste que é mais vítima do que réu e está atuando junto a advogados para limpar seu nome.
Até então, Ghosn permanece um peixe outrora grande em um pequeno lago, vivendo no exílio e sob segurança armada em Beirute.
Este certamente não é o final que ele esperava.