O Brasil ainda não tem uma política nacional que regule iniciativas de combate ao desperdício de alimentos e defina o destino de sobras do processo de produção, comercialização e consumo, mas, na Câmara dos Deputados, tramitam atualmente quase 30 projetos de lei com esse objetivo. No entanto, divergências em torno de alguns pontos impedem o avanço das propostas.
A maioria dos projetos em análise na Casa pretende acabar com a punição civil e criminal de doadores de alimentos. Hoje, supermercados ou empresas distribuidoras de produtos alimentícios podem ser responsabilizados caso doem algum produto e este cause algum mal-estar ou problema de saúde à pessoa que o recebeu.
Para pesquisadores do tema, essa restrição, que consta dos Códigos Penal e Civil, é um dos entraves ao aumento das doações de sobras de alimentos no país. “No Brasil, temos uma situação muito estranha: restaurantes, empresas processadoras de alimentos não podem doar alimentos que sobram, porque a responsabilidade é delas, se houver qualquer tipo de problema de saúde. É uma legislação que vai no sentido do desperdício, porque impede o reaproveitamento”, diz o professor Sérgio Sauer, da Universidade de Brasília (UnB).
Um estudo feito pela consultoria legislativa do Senado Federal mostra que o risco jurídico imposto aos doadores é um dos principais gargalos da legislação relacionada a iniciativas de promoção da segurança alimentar, ao lado das ineficiências técnicas de todas as etapas do processo produtivo.
“Embora o problema da perda e desperdício de alimentos ocorra ao longo de toda a cadeia produtiva, da produção agrícola ou pecuária até o consumo final, estudos demonstram que só é possível promover alterações legislativas ou inovações no marco regulatório relativo ao processo de doação de alimentos. Porque, em tese, as cadeias produtivas já têm os incentivos necessários para promover boas práticas de produção, comercialização, industrialização que levariam à redução de perdas”, afirma o consultor legislativo do Senado Marcus Peixoto.
Ele ressalta que não é possível reunir de forma detalhada, em apenas uma lei ordinária, todos os aspectos relacionados à perda e ao desperdício de alimentos. Por isso, há várias propostas em tramitação, mas Peixoto destaca que o foco do Congresso deve estar na regulamentação do processo de doação.
Bom samaritano
Uma das primeiras propostas elaboradas com o objetivo de mudar essa situação é o Projeto de Lei (PL) 4.747, que tramita há 19 anos na Câmara e é conhecido como Lei do Bom Samaritano. Pelo projeto, pessoas físicas ou empresas que, por intermédio de entidades sem fins lucrativos, doarem a pessoas carentes alimentos industrializados ou preparados ficam isentas de responsabilidade civil ou penal, em caso de dano ou morte causados ao beneficiário pelo consumo do bem doado.
A isenção depende, porém, de ficar comprovado que não houve dolo ou negligência da parte do doador. A proposta aguarda aprovação dos deputados desde 1998. Nesse período, outros projetos com teor parecido foram criados e também aguardam avanço na tramitação.
Em junho deste ano, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara aprovou, por unanimidade, parecer favorável ao Projeto de Lei 5.958/2013, que permite a “reutilização de alimentos preparados para fins de doação”. A proposta incrementa o Decreto 986/69, que institui normas básicas sobre alimentos e permite a doação para instituições beneficentes de alimentos industrializados que tenham sido interditados para venda por apresentar algum tipo de avaria, embora mantenham condições de consumo.
Doze projetos foram apensados à proposta. Um deles é o PL 6898/17, que propõe a criação da Política Nacional de Combate ao Desperdício de Alimentos. Já aprovada no Senado, a proposta permite a doação de alimentos conforme regras a serem regulamentadas e isenta o doador de responsabilidade jurídica. O projeto não considera a doação como relação de consumo entre o doador e o beneficiado.
Existem ainda propostas mais amplas. que visam à instituição de uma política nacional de erradicação de alimentos, na qual é incluída a questão do desperdício.
Plataforma de doação
Um dos últimos projetos que tiveram movimentação na Câmara, o PL 3.070/2015, de autoria do deputado Givaldo Vieira (PT-ES), inclui entre os princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos o estímulo à redução do desperdício de alimentos e retira a punição aos potenciais doadores.Segundo Givaldo, a proposta difere das outras por incorporar a questão do desperdício na legislação ambiental. O projeto acrescenta à Lei de Resíduos Sólidos um tratamento diferente do que é dado aos resíduos de alimentos.
“Em vez de criar uma lei isolada, fomos à Lei de Resíduos Sólidos, uma lei ambiental forte, e fizemos alterações, dando um tratamento diferenciado aos resíduos de alimentos e uma destinação, que seria a doação para humanos, uso animal, compostagem e, em último caso, geração de energia com a massa orgânica não aproveitada para consumo humano ou animal e compostagem”, disse o deputado à Agência Brasil.
Para organizar a destinação dos resíduos ainda com condições de consumo, o projeto prevê a criação da plataforma nacional de oferta de alimentos. Na ferramenta, que seria online, potenciais doadores e aqueles capazes de captar a doação fariam um cadastro sob supervisão de um órgão federal. O deputado explica que o objetivo é estimular a criação dos chamados bancos de alimentos, instituições públicas ou administradas em parceria com organizações sociais que fazem a intermediação do processo de doação de alimentos sociais.
A proposta legislativa já passou por três comissões e foi aprovada em julho na de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Apesar de pronto para ser votado em plenário, o projeto deve aguardar uma longa fila de medidas provisórias e propostas de maior impacto político e econômico que tramitam na Casa, como as reformas política e da Previdência.
“Minha expectativa é neste semestre tratar com as lideranças partidárias e com o presidente da Câmara para ver se a gente consegue um consenso para pautar no plenário, o mais rápido possível, e dar um passo importante para o marco legal de combate ao desperdício. Se aprovado, iria para o Senado, onde poderia ser enriquecido de maneira que, quem sabe ao longo do próximo ano, o país possa ter uma lei que vise objetivamente combater ao desperdício de alimentos, sobretudo nesse momento grave de crise econômica”, ressalta Givaldo Vieira.
Se a proposta for aprovada no Congresso, ainda deve passar por regulamentação. Precisariam ser regulamentados os pontos que tratam das questões sanitárias e os que definem os critérios para que o alimento seja doado. O assunto já tem sido debatido com a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).