Deutsche Welle – Desde a quarta-feira passada (20), quando a “nova Previdência” chegou ao Congresso, análises detalhadas do texto encontraram vários “jabutis” – jargão político para medidas estranhas ao tema central de uma matéria legislativa, mas mesmo assim contrabandeadas para dentro do projeto. Uma delas afrouxa as regras para a mudança de composição do Supremo Tribunal Federal (STF).
O ponto em questão altera o artigo 40 da Constituição, que trata da aposentadoria de servidores públicos. Atualmente, uma das diretrizes previstas neste trecho determina aposentadoria compulsória aos 75 anos. A regra vale, entre outros servidores, para os ministros do Supremo. O texto da reforma da Previdência retira do artigo 40 da Constituição a referência aos 75 anos e determina que a idade da aposentadoria compulsória será determinada por uma “nova lei complementar”.
O impacto da mudança é significativo. Para mudar a idade da aposentadoria compulsória, é preciso alterar a Constituição. Para isso, são necessários 49 votos no Senado e outros 308 na Câmara, em dois turnos. Uma lei complementar, por sua vez, exige apenas 41 votos no Senado e 257 na Câmara, em turno único. Assim, a nova idade de aposentadoria dos integrantes da mais importante instituição do Judiciário poderia ser alterada mais facilmente.
“Essa medida é extremamente grave pois se trata, evidentemente, de uma manobra para colocar contra a parede o Supremo Tribunal Federal”, afirma o deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara. “Se essa proposta passar com essa redação, e eles [os ministros] eventualmente desagradarem o governo, ficarão à mercê de um projeto de lei complementar para que o presidente mande à aposentadoria quem quiser”, diz.
Molon foi o primeiro parlamentar a alertar sobre o “jabuti” do STF. Para ele, a medida é inspirada em ações de governos europeus vistos como autoritários, como os de Viktor Orbán, na Hungria, e do partido PiS, na Polônia. Ambos buscaram retirar força do Judiciário de seus países.
Para o professor de Direito Rubens Glezer, da Fundação Getúlio Vargas e um dos coordenadores do centro Supremo em Pauta, dedicado à observação do Supremo Tribunal Federal, o “jabuti” embutido na reforma da Previdência abre uma “gigantesca margem de insegurança”.
Glezer destaca que, numa Constituição, documento que lança as bases de funcionamento de um país, alguns temas são protegidos e colocados atrás de votações complexas para evitar casuísmos. É o caso da aposentadoria compulsória dos ministros do STF. “A mudança na Constituição tem processos lentos, desenhados assim para evitar que uma maioria de ocasião tome uma decisão oportunista ou apressada”, afirma Glezer. “Quando você desconstitucionaliza, você permite que maiorias conjunturais alterem o sistema”, afirma.
O professor da FGV lembra que não é preciso recorrer aos exemplos europeus para salientar o potencial autoritário da medida. Em 1965, Castello Branco, primeiro presidente da ditadura, ampliou de 11 para 16 o total de ministros no Supremo Tribunal Federal. Quatro anos depois, Costa e Silva fez um expurgo no STF ao aposentar compulsoriamente três ministros que considerava incompatíveis com o regime. “Tanto o candidato Bolsonaro quanto o governo têm sinalizado que não existe uma diferença entre governo e Estado e que há uma tentativa de minar a separação de poderes”, diz.
Molon, o líder da oposição no Congresso, promete resistir. “A ideia é debater [o “jabuti”] na Comissão de Constituição e Justiça e na comissão especial. Se a proposta não for derrotada, nós vamos examinar quais outras medidas tomar”, afirma. Procurado pela DW, o líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (PSL-GO), não respondeu até a publicação desta reportagem.
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PEC da Bengala
Além do “jabuti”, a base de apoio a Bolsonaro tem uma outra estratégia para enfrentar o STF. É a revogação da chamada “PEC da Bengala”, a Proposta de Emenda à Constituição que elevou a idade de aposentadoria compulsória no STF de 70 para 75 anos. Essa PEC foi aprovada em 2015, no início do segundo governo de Dilma Rousseff (PT). A proposta foi articulada pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que agiu para tirar poder da petista e reduzir o número de ministros que ela poderia indicar ao Supremo.
Atualmente, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) coleta assinaturas para revogar a PEC, o que faria os ministros do STF se aposentarem com 70 anos e não mais 75. “Eu quero causar desconforto para o Supremo”, disse ela à Folha de S. Paulo.
Se revogada, a PEC permitirá que Bolsonaro nomeie quatro integrantes do Supremo em vez de dois. Para Glezer, a eventual revogação da PEC da Bengala é casuística, assim como foi sua aprovação, só que mais grave justamente pelo contexto de pressão sobre o Judiciário exposto na reforma da Previdência. “Em 2015 estávamos em meio a uma disputa entre o Legislativo e o Executivo, mas agora teríamos uma união do Executivo e do Legislativo para apagar o Judiciário”, afirma.