Fábio Schaffner /Zero Hora
Não é fácil reverter uma decisão de Sergio Moro. Responsável por julgar os processos da Lava-Jato em primeira instância, o juiz já proferiu 210 vereditos. Em 155 vezes, condenou os réus, ante 45 absolvições. Nos outros 10 casos, não houve sentença por morte do acusado, delação premiada ou outro contexto jurídico. Quando os advogados de defesa ou o Ministério Público Federal (MPF) discordam da decisão do magistrado, recorrem ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). O histórico da Corte, porém, mostra que são escassas as chances de se reformar uma sentença do paranaense.
Das 45 apelações que chegaram ao TRF4, apenas seis foram alteradas pelos desembargadores — um índice de 13,3%. Nutre a esperança de quem caiu na teia da Lava-Jato o fato de que, em cinco casos, o tribunal absolveu condenados por Moro. Na maioria da vezes, eram personagens periféricos do esquema de corrupção: a mãe de uma doleira que trabalhava para Alberto Youssef, o gerente de um posto usado para lavar dinheiro sujo e dois executivos da construtora OAS.
A grande surpresa para quem acompanha os desdobramentos judiciais da investigação foi a absolvição do ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto. Chamado de “Moch” pelos delatores da Lava-Jato — apelido atribuído ao costume de carregar sempre uma mochila para esconder o dinheiro fruto de propina —, Vaccari soma 45 anos de cadeia em cinco condenações de primeira instância. Quando sua primeira apelação chegou ao TRF4, foi inocentado por falta de provas. O petista continua preso em Curitiba por conta dos demais processos, mas a decisão trouxe alento a quem já passou pela caneta pesada de Moro e agora terá pela frente os três desembargadores da 8ª Turma do tribunal sediado em Porto Alegre.
Houve ainda um caso inverso. Ao julgar um laranja de Youssef, Moro decidiu não analisar o mérito do processo, por entender que o réu já havia sido condenado a 11 anos de prisão pelo mesmo crime em outra ação penal conexa — a chamada litispendência. O TRF4 não seguiu o mesmo entendimento. Afastou a litispendência e aplicou mais sete anos de cadeia ao réu. Veja a seguir um resumo do que ocorreu cada vez que o tribunal discordou dos vereditos de Moro.
Quando a Corte absolveu condenados
O tesoureiro
Condenado cinco vezes pelo juiz Sergio Moro, o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto é um dos réus mais assíduos nos processos da Lava-Jato. Em primeira instância, sua pena total chega a 45 anos e seis meses de cadeia. Considerado um dos principais operadores do esquema ao intermediar propina de empreiteiras para o PT, está preso desde abril de 2015.
Sua primeira sentença saiu em setembro do mesmo ano. Vacarri pegou 15 anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Para Moro, o tesoureiro recebeu R$ 4,26 milhões. O dinheiro teria abastecido campanhas do PT e origem em propinas acertadas com a diretoria de Serviços da Petrobras pelo contrato do Consórcio Interpar. Na sentença, o juiz cita nove provas, entre as quais seis declarações de outros cinco investigados — a única prova material foram as doações ao PT: “O substrato probatório é suficiente para a condenação criminal”.
No final de junho, o TRF4 modificou esse entendimento. Embora o relator João Pedro Gebran Neto tenha votado pela manutenção da pena, por 2 a 1 a 8ª Turma absolveu Vaccari por falta de provas. O voto divergente partiu do desembargador Leandro Paulsen. Ele reconheceu que havia um contrato fraudulento sustentando as doações ao PT mas, numa clara crítica à peça do Ministério Público Federal, disse que faltaram provas: “Há indícios do conhecimento de Vaccari acerca do esquema ilícito de corrupção na Petrobras, mas nenhuma prova de que o agente dolosamente tomou parte na corrupção”. Para Paulsen, os depoimentos dos cinco delatores contra Vaccari não foram suficientes para condená-lo.
O gerente
Quando a Lava-Jato foi às ruas pela primeira vez, em 17 de março de 2014, um dos alvos foi o gerente-financeiro do Posto da Torre, André Catão de Miranda. A empresa pertencia ao doleiro Carlos Chater e era usada para lavagem de dinheiro de traficantes de drogas e de Alberto Youssef, principal operador da corrupção na Petrobras. Escutas telefônicas da Polícia Federal (PF) mostraram Chater orientando Miranda a depositar US$ 88 mil em contas de integrantes do esquema.
Preso no marco zero da Lava-Jato, Miranda só deixaria a cadeia sete meses depois, em 20 de outubro de 2014, ironicamente no dia em que foi condenado por Sergio Moro. Para o juiz, ao fazer as transações financeiras, ele ajudou a lavar dinheiro do tráfico de drogas. Pegou quatro anos em regime semiaberto, mas ficou em liberdade por conta do “papel subordinado”.
Quase um ano depois, em setembro de 2015, Miranda foi absolvido pelo TRF4. Embora o relator da Lava-Jato na Corte, João Pedro Gebran Neto, tenha votado pela manutenção da condenação, os outros dois membros da 8ª Turma não encontraram provas do crime imputado ao gerente.
No voto revisor, o desembargador Leandro Paulsen levou em consideração as alegações de Miranda, de que os depósitos eram rotina na sua atividade e que desconhecia a origem do dinheiro. “Tal subalterno sequer tem conhecimento acerca do assunto a ser tratado, porquanto recebe ordens simples para realização de pagamentos como se estivesse diante de contas ordinárias da empresa a que está vinculado”, escreveu Paulsen. O desembargador alfinetou a decisão de Moro, citando o preceito in dubio pro reo ao lembrar que o juiz havia considerado a tese da defesa de Miranda “duvidosa” e não “improcedente”.
A mãe
Amante de Alberto Youssef, a doleira Nelma Kodama arrastou para a Lava-Jato a própria mãe, Maria Dirce Penasso. Nelma foi presa no aeroporto de Guarulhos ao tentar embarcar para a Itália com 200 mil euros escondidos nas calcinhas. Condenada por Sergio Moro a 18 anos de prisão, foi considerada peça fundamental em um esquema de lavagem de dinheiro e evasão de divisas que movimentou R$ 221 milhões.
De acordo com o magistrado, Maria Dirce teria cedido o nome à filha para ocultar um Porsche adquirido ilegalmente e para abrir contas correntes e empresas de fachada no Exterior. O juiz entendeu que ela não estava “envolvida no cotidiano das operações”, portanto a absolveu da acusação de pertencer a organização criminosa, mas condenou-a a dois anos e um mês de cadeia por evasão de divisas e operar instituição financeira irregular, pena substituída por prestação de serviços e multa.
Julgada em dezembro de 2015 no TRF4, Maria Dirce foi absolvida por unanimidade na 8ª Turma. No voto que norteou o acórdão, o desembargador João Pedro Gebran Neto salientou que não “há provas acima de dúvida razoável quanto à ciência de Maria Dirce da participação no crime de evasão de divisas”. Ele também estava convicto de que “ainda que tenha cedido seu nome para a constituição da off-shore, é plausível que a ré tenha assim procedido acreditando que a empresa seria utilizada para fins lícitos, bem como desconhecesse a sua posterior utilização para operações de câmbio fraudulentas”.
Maria Dirce foi a única absolvida nessa apelação, mas dos outros sete réus somente um teve a pena mantida. Os demais tiveram o tempo de prisão reduzido ou conquistaram benefícios como suspensão do processo ou prestação de serviços.
Os executivos
Em 14 de novembro de 2014, a Lava-Jato chegou às maiores empreiteiras do país. Naquela manhã, foram cumpridos 85 mandados judicias, envolvendo nove empresas, entre elas Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Mendes Júnior e UTC. Entre os alvos estavam Matheus Coutinho de Sá Oliveira e Fernando Augusto Stremel Andrade, executivos da OAS. Matheus foi preso e só deixou a cadeia cinco meses depois. Em agosto de 2015, foi condenado a 11 anos de prisão em regime fechado por organização criminosa e lavagem de dinheiro. Fernando recebeu quatro anos por lavagem de dinheiro, mas teve a pena substituída por prestação de serviços.
Para Moro, ambos usaram empresas de fachada para lavar recursos obtidos em contratos fraudulentos da OAS com refinarias da Petrobras. A investigação encontrou um cartão de visitas de Matheus no escritório de Alberto Youssef, além de interceptar mensagens trocadas entre eles, nas quais o doleiro pede dinheiro ao executivo para repassar ao ex-deputado Luiz Argôlo. Já Fernando assinou contrato pela OAS com a empreiteira Rigidez. Segundo Moro, o acerto foi usado para lavar propina no valor de R$ 1,8 milhão. “A lavagem envolveu especial sofisticação, com a realização de diversas transações sub-reptícias, simulação de prestação de serviços, contratos e notas fiscais falsas”, disse o juiz.
Em novembro de 2016, o TRF4 absolveu os dois por unanimidade. Conforme o desembargador João Pedro Gebran Neto, não foi possível provar que tinham consciência dos crimes. “Não há nos autos indícios mínimos acerca do conhecimento do réu sobre a origem ilícita dos valores envolvidos”, escreveu Gebran sobre Fernando. Quanto a Matheus, o desembargador lembrou que Youssef disse em depoimento que as mensagens trocadas com o executivo não se referiam à propina.
Quando a Corte condenou um “absolvido”
O office-boy
De todas as 45 decisões de Sergio Moro que passaram pelo crivo do TRF4, em apenas um caso os desembargadores condenaram um réu que não havia sido sentenciado pelo juiz de primeira instância. Autodenominado office-boy de Alberto Youssef, Waldomiro Oliveira administrava três empresas de fachada usadas pelo doleiro para pagar propina e lavar dinheiro obtido em contratos fraudulentos pela Petrobras.
A atuação de Oliveira no esquema fez ele responder a seis ações penais. Moro, contudo, só o condenou no primeiro processo, no qual, a partir de contratos da Camargo Corrêa, ele fez transações financeiras de R$ 18,6 milhões a mando de Youssef. Recebeu pena de 11 anos e seis meses por organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Nas demais ações, o juiz entendeu que havia litispendência — instrumento jurídico pelo qual um réu não pode ser condenado pelo mesmo crime em processos conexos ao qual já teria sido penalizado. Tecnicamente, não foi absolvido, mas deixou de ser punido.
Quando o primeiro processo chegou ao TRF4, os desembargadores mantiveram a condenação e aumentaram a pena para 13 anos e dois meses. Já no processo seguinte, no qual Oliveira era acusado de lavagem de dinheiro, mas desta vez por movimentar recursos da empreiteira Engevix, a 8ª Turma reformou a decisão de Moro.
Os magistrados aceitaram a tese do Ministério Público Federal, segundo a qual “não é possível afirmar que a lavagem de recursos criminosos da Camargo Corrêa constitui continuação da lavagem de recursos criminosos da Engevix ou vice-versa, pois são empreitadas diferentes, ocorridas em condições de tempo e lugar distintas”. Por entender que agora Oliveira teria lavado mais R$ 6,5 milhões, afastaram a litispendência alegada por Moro e o condenaram a sete anos e seis meses de cadeia.