Agência O Globo – O Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu reagir à decisão do juiz Sergio Moro de proibir o uso de provas da Lava-Jato contra delatores e empresas que assinaram acordos de leniência com a força-tarefa em Curitiba. Numa raríssima crítica pública ao magistrado, oriunda de uma autoridade de um órgão de controle, o ministro do TCU Bruno Dantas chamou de “carteirada” a decisão de Moro e disse, em entrevista ao GLOBO, que somente o Supremo Tribunal Federal (STF) pode retirar do TCU as provas compartilhadas pela Lava-Jato dois, três anos atrás.
“Se estamos falando de cooperação, não pode haver espaço para uma carteirada de um dos atores que está na mesa de discussão. Alguém pretender dizer: ‘Olha, esse elemento de prova é meu e ninguém pode usar.’ Não é assim que se age no Estado de Direito”, afirmou o ministro do TCU.
Dantas é relator no tribunal de processos que apuram superfaturamento nas obras da usina nuclear Angra 3, em Angra dos Reis (RJ). Por fraudes em licitações, o TCU declarou a inidoneidade de quatro empreiteiras e sobrestou a punição a outras três que assinaram um acordo de colaboração em Curitiba: Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez. A ideia era buscar um entendimento com a força-tarefa da Lava-Jato, de forma a permitir ressarcimentos ao erário que superem os valores definidos nos acordos de leniência assinados entre as empresas e o Ministério Público Federal (MPF).
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A decisão do juiz Sergio Moro veda a utilização de provas e evidências colhidas na Lava-Jato, já compartilhadas dois, três anos atrás, contra delatores e empresas que fizeram acordos de leniência. Como o senhor enxergou essa decisão?
O juiz Sergio Moro tem um papel central nos últimos quatro anos no Brasil, nesse combate à corrupção que, felizmente, criou um ambiente propício em todas as instituições para o aprofundamento de investigações. Claro que as investigações do TCU foram revigoradas pela Operação Lava-Jato e nós devemos muito à inteligência, à coragem, à capacidade técnica que a força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF) e o juiz Sergio Moro demonstraram nesses processos. No entanto, passados quatro anos da Operação Lava-Jato, nós fomos surpreendidos com essa decisão. Trata-se de uma decisão extemporânea. Quando as provas foram solicitadas, essas provas foram enviadas sem qualquer reserva. Desde o início do processo, o juiz Sergio Moro tem dito que a publicidade das provas é a alma da Operação Lava-Jato. O compartilhamento tem um significado especial, quando a prova está num processo sigiloso. Se o processo é público e as provas são públicas, se o porteiro do prédio do tribunal entrar na internet e tiver acesso às provas, eu fico a me perguntar: há necessidade de compartilhamento dessa prova? A prova é uma evidência de um fato. Se o fato é conhecido, essa prova, esse fato pode sim ser investigado. Há uma relação bilateral entre a força-tarefa, a 13ª Vara de Curitiba e o TCU. Se por um lado nós recebemos muitas informações importantes, nós também colaboramos com a Lava-Jato com inúmeras análises, auditorias e documentos. Há uma relação de mão dupla aí.
O senhor acha que, com a decisão, ele atropelou essa relação?
Faltou diálogo. Passados quatro anos, nós estamos testando um arcabouço normativo novo, estamos num aprendizado. Neste aprendizado, cometem-se acertos e erros. Acho que a falta de coordenação entre órgãos de controle – Ministério Público, TCU, CGU, AGU – gera uma insegurança e um ambiente que não é o desejado. Passados três anos desse aprendizado, estamos chegando a um ponto satisfatório. Recentemente, tivemos um primeiro acordo de leniência que envolveu todas as instituições. A impressão que se dá é que, quando se chegou a um entendimento, vem um fato novo, e essa decisão é o fato novo, que joga por terra todo esse esforço. Se estamos falando de cooperação, não pode haver espaço para uma carteirada de um dos atores que está na mesa de discussão. Alguém pretender dizer: “Olha, esse elemento de prova é meu e ninguém pode usar.” Não é assim que se age no Estado de Direito, principalmente quando se deseja o ambiente cooperativo.
Por que o senhor acha que ele decidiu seguir o pedido dos procuradores da força-tarefa e tomar essa decisão?
Não posso saber o que subjetivamente o convenceu a tomar essa decisão. O que nós percebemos nestes anos de aprendizado com a Operação Lava-Jato é que as empresas que celebraram acordos de leniência em Curitiba, embora ninguém tenha prometido isso a elas, elas não desejam desembolsar nenhum centavo. A grande verdade é que elas desviaram valores muitas vezes superiores aos que elas negociaram em Curitiba. O artigo 16 da Lei Anticorrupção, que é o que tem orientado toda essa operação, juntamente com a Lei de Organizações Criminosas, diz com todas as letras que o acordo de leniência pode afastar outras sanções, mas que o ressarcimento do dano não é pena, não é sanção, é uma obrigação legal, logo o ressarcimento deve ser integral. A corrupção não pode dar lucro. Não é possível que uma empresa que roubou R$ 20 bilhões pague R$ 1 bilhão e seja anistiada, porque colaborou para que outras pessoas fossem presas. A prisão é uma das partes da punição. Quando se desviam bilhões de reais, esse dinheiro sai do bolso do trabalhador brasileiro. Então ninguém pode anistiar, ninguém pode perdoar um dinheiro desviado por corrupção.
Os acordos de leniência anistiam as empresas, na sua opinião?
A força-tarefa teve conosco uma relação de altíssimo nível e muito cooperativa. O procurador Deltan Dallagnol esteve no TCU algumas vezes. E em todas as vezes ele me disse que os procuradores jamais prometeram às empresas quitação, anistia do dano. É evidente que as empresas, do ponto de vista comercial, não têm interesse em pagar nada. As empresas jogam com essas tensões e muitas vezes tentam jogar as instituições umas contra as outras. O que me surpreende é que pessoas experimentadas como os procuradores da força-tarefa e o juiz Sergio Moro tenham entrado nessa questão de asfixiar os órgãos de controle. Retira-se dos órgãos os meios para obter a condenação pelos desvios. Em última análise, significa sim um perdão dos valores que foram desviados.
Esse desentendimento entre órgãos de controle é histórico, e começou a mudar com a Lava-Jato, cujo êxito é atribuído exatamente a uma afinação inédita entre Ministério Público, Justiça, PF, Receita Federal. Como buscar esse entendimento?
A decisão não mediu as consequências com o rigor que deveria ter existido. Tenho certeza que o juiz Sergio Moro, compreendendo o dano que a sua decisão pode causar na persecução ao ressarcimento ao erário dos valores bilionários que foram desviados da Petrobras, vai se convencer que a decisão não é adequada. Não aposto em desarmonia. Uma vez que a prova chegou aos autos do processo, e se ela é lícita, pouco importa como ela chegou. Ela será considerada. O juiz Sergio Moro deu esse despacho, posso até não compreender as razões… A grande verdade é que as provas que estão no TCU só quem tira é o Supremo Tribunal Federal (STF). Não existe alguém arrancar dos processos do TCU as provas que lá estão.
O TCU vai provocar o STF neste sentido?
Não precisa. O TCU continua trabalhando como está.
Isso não significa um descumprimento da decisão?
Não existe isso, não existe descumprimento. As provas estão lá.
Mas a decisão diz que as provas ficam vedadas contra delatores e empresas que fizeram leniência. Não é um descumprimento?
As instituições não se subordinam umas às outras. Para que o Poder Judiciário dê uma ordem ao TCU, é preciso que haja uma ação própria distribuída ao juiz competente que pode dar uma ordem ao TCU. No Brasil só existe um juiz que pode dar uma ordem ao TCU: o Supremo Tribunal Federal.
A decisão não implica uma retirada imediata das provas, então?
Absolutamente não. Evidente que uma empresa pode questionar. Se o Supremo entender que tem razão, acataremos a decisão. Essas provas que vieram da Lava-Jato foram provas incipientes. Fui informado pelos auditores do tribunal que há mais de um ano a Lava-Jato não nos envia nenhuma prova nova.
O que pode haver, então, é mais insegurança jurídica?
Pode haver mais trabalho para separarmos quais foram as provas que vieram da Lava-Jato e quais foram as provas que vieram do TCU. De certa forma, o que isso traz de essencial é uma falta de diálogo. Tudo isso poderia ter sido equacionado com diálogo. O TCU tem prestigiado muitíssimo o trabalho da Lava-Jato. Tanto é verdade que, no caso de Angra 3, caminhávamos para declarar a inidoneidade de sete empresas. A força-tarefa nos enviou uma correspondência pedindo que não condenássemos as três empresas que têm acordos de leniência com eles, e nós atendemos. Não há até aqui, e é isso que nos traz perplexidade, nenhum movimento de desprestígio aos acordos. Não apuramos as sanções, mas os danos.
E como fica esse caso específico do processo de Angra 3?
A competência do TCU não deriva de favor de órgão ministerial ou judicial, mas da Constituição. Quem diz que o TCU pode declarar a inidoneidade de uma empresa quando comprovada fraude à licitação é a lei. O TCU, para prestigiar a Lava-Jato, decidiu que abriria mão dessa sua competência se esses acordos firmados com as empresas previssem também uma colaboração para a identificação do dano e um compromisso da empresa em quitar o valor do dano.
Mas as empresas se recusam a quitar o dano excedente ao especificado no acordo de leniência.
Vou dar um exemplo concreto. A Andrade Gutierrez assumiu o compromisso de pagar R$ 1 bilhão no acordo de leniência com a força-tarefa. Só em Angra 3, a Andrade Gutierrez já pode ser condenada em R$ 1,5 bilhão. Quem vai perdoar esses R$ 500 milhões? Alguém está disposto a perdoar esses R$ 500 milhões? A lei permite que alguém perdoe esses R$ 500 milhões? Algum agente estatal está disposto a anistiar essas empresas? O TCU não está. Algumas das empresas não estão dispostas a assumir novas dívidas. Outras já assumem. Eu recebi executivos de duas empresas, que fizeram acordo de leniência, dizendo que estão dispostos a desembolsar novos valores conforme o TCU indique.
Quais?
A Odebrecht e a Camargo Corrêa. E a Andrade Gutierrez nos procurou e disse que estava disposta. Os órgãos precisam conversar mais para que este telefone sem fio da conversa com as empresas não acabe criando tumulto.
O senhor pretende procurar o juiz Sergio Moro?
Não, meus processos continuam o fluxo natural deles. Não vejo necessidade de procurar ninguém. Meus processos não têm nenhuma informação da Lava-Jato. No caso de Angra 3, usamos informações do Cade. O Cade não compartilhou informações conosco. O Cade publicizou essas informações e nós utilizamos. No caso de Angra 3, a própria Camargo Corrêa veio ao TCU e apresentou todas as provas. Entendemos que o ambiente deve ser de cooperação, e não de disputa institucional.