Há um ano relatei a invisibilidade da população negra e a falta de reconhecimento histórico presentes em Santa Catarina e em todo o território sul do Brasil. E mesmo com o passar dos tempos percebo o desconhecimento das pessoas. Vamos relembrar. Por volta do século XIX, imigrantes oriundos de diversas partes da Europa vieram para o Brasil, muitos deles para a Santa Catarina com a promessa de vida próspera, solo fértil para o plantio, riquezas e felicidade. Mas esse fato só se sucedeu após o fim da escravidão em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Com isso surgiu novos problemas aos negros apesar da alegria pela sua liberdade. Os negros se viram sem trabalho, sem moradia, e sem o que comer. A luta pela sobrevivência foi difícil. Aqui em Santa Catarina entraram na jornada dura de trabalho. Não diferente dos imigrantes alemães. Aos negros o trabalho escravo. Aos alemães o trabalho remunerado.
Essa imigração preencheu os espaços na lavoura substituindo o trabalho escravo. Com o tempo a escravidão foi enfraquecendo no início do século XIX, devido o fato da política internacional a favor do trabalho livre. Mas até o negro conquistar o seu espaço levará tempo. Aqui no Sul somos a minoria apagada na história.
E como podemos perceber… Quem não conhece a parte sul do Brasil tem uma opinião equivocada dos poucos negros que há. Digo poucos, devido o fato de ser grande o número de italianos e alemães. Em Santa Catarina não seria absurdo dizer que há o coronelismo. Existe uma elite que manda e desmanda por aqui. Vejamos entre as décadas de 50 a 60. Os espaços eram delimitados e os poucos em que o negro podia entrar não lhe permitiam está próximo de pessoas brancas, lado a lado.
Em sociedades desportivas, ou clubes, ao negro só cabia beber no canto destinado para Ele, e em nenhum momento podia dançar. Sua expressividade sempre foi banida.
A liberdade dos negros só havia se dado no papel assinado pela princesa Isabel. O pós – abolição era outra realidade e que em muitas religiões permanece. A não presença de negros em espaços brancos manteve-se e principalmente com bastante vigor em Santa Catarina. Com isso surgiu a prática de clubes para negros. Cada clube social e suas associações ofereciam programações de lazer. Nos clubes negros as mulheres participavam de cursos de corte e costura formação para o mercado de trabalho, preparação para o casamento. Casamento na época era à base de uma boa sociedade.
Voltando aos dias atuais, a população negra por aqui é tratada num nível elevado de desigualdade. A qualidade de vida do negro é bastante atrasada e isso acontece no Brasil todo. Mesmo crescendo num ritmo elevado, em relação aos brancos estamos ficando para trás. Segundo a ONU de 2000 e 2010 o índice de desenvolvimento humano da população negra cresceu em média 2,5% ao ano acumulando alta de 28% no período. Algo bastante significativo. No entanto, com relação a renda financeira, os estudos mostram um abismo entre os dois grupos. Bem sabemos que a população negra não ganha nem a metade do que a população branca ganha.
E se não bastasse isso, muitos de nós não conhecem a sua história, ou por ser ocultada ou apenas lhe apresentado o que é devido saber. Claro que alguns são acostumados a não buscarem o passado, pois nem o período escolar lhe dá incentivo ou até mesmo o conhecimento de suas origens e cultura. Os negros no sul não fazem parte da história de cada estado. Se for querer saber da heroína Antonieta de Barros, em Santa Catarina pouco irás encontrar. E o fato de que a construção de nosso estado deu-se início pelas mãos de negros vai lhe parecer algo surreal. O que não devia ser assim, a existência de negros no sul teve como origem a vinda de africanos escravizados nos navios negreiros.
Apesar de minoria nós existimos e a nossa luta deu-se nas batalhas pela liberdade onde surgiu a organização de quilombos. Os quilombos eram refúgios dos negros fugitivos. Ali se reuniam para viver.No sul, pelos relatos encontrados, a história dos negros era abordada como inexpressiva praticamente ausente.No entanto nos últimos anos, exatamente 17, foram encontrados mais de cem redutos negros e espalhados pelos três estados. Porém todos eles em terras sem registros em cartório. Viver em Santa Catarina não é nada fácil para nós negros, os desafios são grandes. E quando se é falado de cor da pele logo se referem aos negros.
Parece até que o indivíduo branco não tem cor. Só que a verdade é que a cor da pele de uma pessoa branca é encarada com naturalidade, não pesa na balança.
Em relação a cor do negro, a balança é pesada. Os obstáculos são diversos.
E o conjunto que compõe o negro, cabelo, estilo e cultura, gera uma diferenciação entre os outros indivíduos, como se o negro fosse um ser de outro planeta. Sendo na verdade, ele, uma pessoa como tantas outras. Só mesmo um negro para dizer o que é ser um negro e buscar o seu espaço.
Lembro-me que quando criança ficava braba quando me chamavam de negra. Eu não me via assim, só me via gente. Eu não era raça. Eu não era cor. Eu era uma pessoa. Eu sou pessoa. Somos pessoas. E temos participação efetiva na história. No Rio Grande do Sul tivemos participação na Revolução Farroupilha, de 1835 a 1845. Por necessidade e também por habilidades o negro se tornou soldado. E analisando toda história do Rio Grande do Sul, vemos que é evidente o racismo em seus aspectos históricos. Como exemplo, temos a remoção da população negra. Assim como Santa Catarina, esse estado é construído com a imagem “embranquecida”. Então, o negro não era de bom agrado estar no reduto central da cidade.
O negro era visto como posse, uma mercadoria foi-se distanciando do Centro. Com isso deu-se o nascimento das colônias. No Rio Grande do Sul, o bairro Colônia Africana. Isso no século XIX. Isso surgiu com a junção de territórios ocupados. As ocupações se davam pela população oriunda do antigo sistema escravagista. A escravidão ainda tem influência na vida do negro. E segundo Wikipédia, escravidão é a prática social em que um ser humano assume direitos de propriedade sobre o outro, designado por escravo.
O pensamento escravagista da sociedade faz com que o negro viva em situação de desigualdade. Analisando o contexto os dados comprovam que a população branca tem mais oportunidades que a população negra. E podemos dizer que isso e tantos outros fatores são frutos do pós – escravidão. E querer que o negro se cale e deixe de lutar é reviver a história. O escravo chora a dor causada pelo chicote nas costas e canta o canto sofrido em clamor de sua liberdade aos orixás. Zeferina à frente do seu tempo, uma rainha quilombola luta contra a escravidão em Salvador na Bahia. Sua luta não é em vão. Enquanto isso o zunido do vento ecoa lamentos dos negros. E a sociedade dita regras. E a Senhoria quer que calemos nossas vozes.
Calar os gritos de dor? Apagar nossas origens? Não. Prefiro embarcar numa viagem por entre Biguaçu e Itajaí. Em Biguaçu, município próximo a Florianópolis, são poucos os relatos de negros em sua cidade. Mas entrando fundo na história, exatamente no século XIX encontro o negro Rafael. Este escravo negro, de Três Riachos engravidou uma escrava em outra Fazenda de São Miguel em Biguaçu. O que nos parece normal, naquele tempo era incomum. O negro pagou o preço mais cruel. Rafael foi sentenciado à morte, pois ele não era da classe dos baguás.
Baguá significa garanhão. Negros credenciados para engravidar escravas. E eis a questão sucinta: Mas por quê? Já chego lá. Pois Bem, Rafael foi sentenciado à morte e em março de 1844 deu-se sua morte. A forca, assim como era muito usado na época foi instalada na igreja Matriz de São Miguel aos arredores de uma plantação de café. Seu enforcamento foi assistido pela população local. “E viva a morte!” A morte de Rafael era um espetáculo para todos como uma peça teatral no Teatro Governador Pedro Ivo Campos ou como o sarau dedicado a cultura africana com apenas um negro em destaque declamando para a elite catarinense em Itajaí.
Rafael. Nome bonito! Porém sem sobrenome. Como é natural hoje dar nomes aos bichos domésticos sem dar-lhes sobrenomes assim era feito com a população negra.
Tratados como animais os negros não eram considerados gentes quiçá nobres.
No entanto no século XIX tinha os negros de classe, o que até hoje é uma vergonha para a raça negra. Os negros de classe eram os ditos negros Biguás. Estes eram obedientes aos seus senhores, o que atualmente chamamos de capachos.Tais negros a mando de seus patrões engravidavam escravas negras. Por serem tão fiéis chegavam denunciar os membros da sua própria raça, ditos desobedientes. No entanto não perdiam a condição de escravos. Mas posso afirmar que viviam em sombra e água fresca, pois não trabalhavam duros na roça como os demais. Assunto um tanto complexo! Não pense que era fácil ser um negro Baguá, obediência não era a única condição, o negro escravo tinha que ser forte e robusto. Digamos que a escravidão era o cargo de baixo salário, o que pagamento não existia na época e ser Baguá era a sua promoção. E onde entra o lance de engravidar as escravas? Pois bem… O ritual, assim eu posso dizer… O ritual de engravidar as negras começara com a ordem do senhor de escravos. Este mandava as escravas selecionadas por ele para irem para o mato. Em seguida ele chamava o Baguá, dizia o nome das escravas e ordenava ir capinar com elas. Entendido o recado, assim tudo acontecia. Só não se tem a certeza de que era com o consentimento delas ou apenas por obediência ao Senhor.
O fato é que meses depois os filhos nasciam e já desde pequenos eram submetidos à venda para capitães de navios vindos diretos da Argentina e Paraguai com parada em São Miguel para abastecerem-se de água, vinda do aqueduto que avançava vários metros após a praia. As crianças negras, cruelmente eram trocadas por carnes. Um fato, talvez não significativo, Biguaçu é considerado o quarto município mais antigo do estado. Em comparação com Itajaí uma cidade portuária, tem em seu histórico a presença de Africanos. Mas isso é outro assunto que irei voz falar não agora. Curioso?
Pois uma curiosidade da época é que, com o fim do tráfico internacional de escravos os negros do Sul foram vendidos para sudeste. Cruelmente os filhos eram arrancados de vossas mães.
O contraponto entre o passado e o novo é perda. A perda das origens, a perda dos seus direitos, a perda da sua dignidade, a perda da vida. Quando a lei áurea foi assinada, a abolição era como uma senhora de vestido rodado lutando pelos seus direitos de vida, igualdade e liberdade. Esta senhora que nascera com a escravidão. Se não fosse este ato cruel, a senhora abolição seria apenas uma lenda de pescador à beira mar de Itajaí em Santa Catarina.
A escravidão vem com a descoberta de um Brasil grandioso pelos portugueses. Com a exploração dessa terra, surge o problema da mão de obra para a lavoura. Com isso é que veio a tentativa de escravizar os índios. O fracasso da escravidão indígena trouxe à ideia de trazer do continente Africano esses trabalhadores, ou seja escravos.
A partir daí toda luta se inicia. E podemos dizer que é uma luta sem fim. É como querer ter seus direitos garantidos numa terra onde o negro é apagado de sua própria história. O pós – escravidão só veio confirmar a luta. Conta-me o senhor João que em Florianópolis negro algum podia entrar nos clubes da alta sociedade, a tal elite catarinense. O único lugar de fácil acesso era o cinema, mas o rapaz ou moça tinham que estar bem vestidos. Na sua rotina diária buscava comida para o seu patrão e ainda tinha que esperar ele verificar se nada tinha sido pego por ele. Um pão se quer não podia faltar mesmo que fosse para matar a sua fome.
E nos dias de hoje uma parcela da população brasileira acha que nós negros falamos somente asneiras e nos vitimamos. Os fatos da história comprovam o contrário.
Negro sempre falará demais quando o assunto referente for o racismo e qualquer forma de preconceito for lhe acometido. Negro fala muito sim, porque negro luta. Negro não se cala. São séculos de exclusão. A começar pela escravidão, mulheres usadas como empregadas, escravas sexuais e procriadoras de futuros escravos. Já os homens submetidos a torturas nos troncos, o trabalho escravo nas lavouras e quando não corrompidos em troca de suas liberdades. Após a escravidão o negro fica perdido, passa fome e se vê sem moradia. Sem expectativas de vida.
Expectativa, uma palavra que muitas das vezes não faz sentido na vida de um negro. Em pleno século XXI, com tantas modernidades o negro tem que enfrentar o pensamento arcaico da população brasileira. Com o fascismo a solta não dá para fechar os olhos e tampar os ouvidos para tudo. Ir à luta de forma correta é o que devemos fazer.
Eu luto com a arma mais bonita, a escrita. O que eu aconselho todos os negros do sul a usarem essa arma tão poderosa e não se calarem diante do opressor. Santa Catarina é só um exemplo do que há pelo Brasil todo. O Brasil negro! Uma eterna Kizomba!
Viemos num país ainda longe da abolição. De dez desempregados no Brasil seis são negros. E todos recebem em média 56,2% do salário da população branca.
Na população carcerária do nosso país são exatamente 61% de negros presos em contradição são 35,7% brancos. Na extrema pobreza são 75% negros em relação a 25% de brancos.
Já com relação aos países com maior número de negros o Brasil fica em segundo lugar. Em primeiro lugar está a Nigéria. A população do Brasil é de 54% de negros e 46% brancos. O triste de toda estatística é que as mortes por homicídios são 71% negros mortos com relação a 29% de brancos.
*Clarisse da Costa é poetisa e artesão em Biguaçu
Contato: clarissedacosta81@gmail.com
**Dados estatísticos da ONU